Uma escritura que, quanto mais avança, mais se desfigura. Um universo ficcional furado, cheio de fendas e vazamentos, como uma casa antiga ou, talvez, um prédio em construção. Uma visão da literatura não como reconstituição do real, muito menos como sua duplicação, mas como um atestado — corajoso e eloquente — de seu fracasso. Assim é a ficção de Sidney Rocha, de quem releio, a convite da Bienal Internacional do Recife, O destino das metáforas, seu premiado livro de 2011.
Fernanflor, seu segundo romance, de 2015, é talvez o exemplo extremo dessa estética da desnaturação. Sim, os personagens de Sidney — como o inalcançável Fernanflor — são seres inatingíveis, que estão além de qualquer natureza. Sua própria escrita, fluida, escorregadia, empenhada sempre em se desmentir, recusa não só a ideia de um mundo natural, mas também a ideia — tão grata aos estetas — de um estilo. Não há nela nada parecido com uma “voz autêntica”. Nenhuma marca, nenhuma grife, nenhuma impressão digital. “Não pretendo ter um estilo, eu quero ter voz”, desabafou, certo dia, o escritor norte-americano Philip Roth, tocando no centro da questão que Sidney recoloca em cena.
Sempre irônico, o irlandês Samuel Beckett disse que escrever com estilo é o mesmo que “colocar uma gravata borboleta em torno de uma garganta com câncer”. O saudável Sidney não usa borboletas. Homem afetuoso e simpático, não tem, porém, uma “imagem pública”, já que seus livros a dissolvem e escondem. O tema que, no Recife, me propuseram a respeito de sua obra foi: “Com quantos pontos finais se fazem as reticências: a morte como experiência vital”. Ele me abre dois caminhos. Primeiro, me leva a pensar que a literatura — e a vida — é feita de reticências, isto é, de falsos pontos finais que, em vez de matar, deixam algo em suspenso. E este algo é a própria escrita — a própria vida.
Só graças a essa série de pequenas mortes (breves orgasmos?) continuamos a viver. A cada minuto, a cada instante, o presente já nos escapou e já é passado. Clarice Lispector viveu em busca do que chamava de “instante já”. Mas basta você dizer “já”, e um segundo depois a palavra já foi empurrada para o passado, já não está mais ali. O presente fracassa. Estamos pensando sempre em vencer, mas, a rigor, somos filhos do fracasso — filhos dessa série esgotante de reticências em que um ponto desmente o anterior, e este o anterior, em um abismo que só termina com a morte, mas que, enquanto isso, sustenta a vida — que é a própria vida.
As sucessivas mortes compõem não só a vida, as nossas vidas, mas os personagens de Sidney Rocha. Sidney escreve em “estado de reticências”. Consulto o Houaiss: “A reticência é a omissão ou supressão voluntária de uma coisa”. Nelas, alguma coisa é omitida, nelas se guarda sempre um segredo. Em O destino das metáforas, cada conto inaugura um novo mundo. Cada um deles só existe por causa da morte do “estilo” do conto anterior. E só assim, nessa sucessão (reticências) de vidas e estilos interrompidos, sua literatura se escreve. Nesse sentido, a morte se revela, de fato, não como o fim de todas as coisas, mas como uma experiência vital.
Penso em Hossana, último conto do livro. Relata a história de um homem que, de repente, se transforma em um gigante. Um ogro emerge de dentro dele. Aparece quando ele vence a covardia e manifesta sua ira. Surge em forma de ódio. O ódio hoje está espalhado pelo país, infelizmente nós o conhecemos bem de perto. É útil, portanto, nele pensar. Quem é esse Outro — esse Estranho — que, de repente, se levanta e toma a frente da cena? Se não quisermos esconder a verdade, devemos admitir que esse gigante existe, oculto mas ativo, dentro de cada um de nós, só nos restando aprender a controlá-lo. Alguns, contudo, não o controlam. Por que não o controlam? Porque são incapazes de pensar. O gigante não pensa. “Ele não cogita fechar os olhos e pensar um pouco”, relata Sidney.
Esse gigante, no fim das contas, carrega uma grande melancolia. Há uma relação estreita entre a melancolia e a destruição — e, nesse sentido, podemos nos perguntar se os relatos de Sidney não são, eles também, melancólicos. Na melancolia se escondem a morte e o abate. “Tudo era terror e uivos e desespero e ocaso”, Sidney nos diz. Mas será Sidney Rocha quem realmente narra seu livro? Quem se esconde atrás dessa voz que fala em seu nome? E que voz é essa? Nesse caso, devemos perguntar ainda: onde está Sidney Rocha? Será que ele, o cidadão, existe, ou é apenas mais um efeito de sua própria escrita?
O grande problema de Gregor Samsa, em A metamorfose, o relato de Franz Kafka, é que, transformado em um inseto, ele interrompe a sucessão de mortes, ele já não pode nem mesmo morrer — e por isso é varrido para o lixo. Todos precisamos da morte como limite, moldura indispensável para que cada um, à sua maneira, desenhe seu real. Já não existe estilo algum a preservar. Nenhuma marca, ou assinatura. Quantos homens a assinatura “Sidney Rocha” esconde? Será que o homem com quem jantei e conversei durante a Bienal do Recife, que se apresentou sempre como Sidney Rocha, é mesmo Sidney Rocha? Ou ele é apenas um duplo como aquele que, em Castilho Hernandez, o cantor e sua solidão, se apresentando como um candidato a sósia, acaba por tomar o lugar do verdadeiro Castilho?
Estamos perdidos na teia das metáforas. Elas são nosso destino. A metáfora é uma isca que nunca pesca tudo. A metáfora, diz o Houaiss, é “a designação de um objeto ou qualidade mediante uma palavra que designa outro objeto ou qualidade”. Toda metáfora carrega um segredo (e um fracasso). Para nos dizer uma coisa, ela precisa nos transportar para outra coisa. A metáfora nunca está satisfeita e nunca nos deixa satisfeitos. De contundentes metáforas se compõe a ficção de Sidney Rocha. Como nos antigos filmes de aventuras, ela é pura areia movediça. Por isso, a literatura de Sidney nos injeta insegurança e espanto. Empurra-nos para a borda de um abismo, levando-nos a sentir, de modo intenso, o derramamento da vida.
JOSÉ CASTELLO
É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros