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Obras sob Tutela

Guia:

Fernanflor

Sidney Rocha
A Estética da Indiferença
Editora Iluminuras
Livraria Martins Fontes

 

 

O CÉU DENTRO DE UM INFERNO. INVEROSSÍMIL. ALI NASCEU Jeroni Fernanflor. No dia de São Narciso de Jerusalém. Mundo onde as mentiras se soldavam às verdades. Ali cresceu Jeroni Fernanflor, na ilha das verdades excessivas.

Ele é o menino no alto da escadaria, invadido por silêncios e agarrado ao corrimão, olhando para Cristina de Fernanflor. Dali vê também o relógio de coluna alta bem à entrada do salão, trambolho das mansões endinheiradas no mundo todo, pronto a humilhar o visitante com seu pêndulo de marfim, os tique-taques em gotas rouquejando naquele poço, mesmo quando em algumas horas do dia o silêncio fosse a lei mais severa.

Cristina está indo se sentar junto à janela, poseur no teatro das tardes suarentas, senhora e refém da plateia de escravos. No caminho, deixa o frasco gotejar essência de lilases brancas sobre os móveis, até alcançar o grande tapete de peles ao canto da sala. Ela está eternamente vestida para grandes ocasiões nenhumas. A plateia vê Cristina pelas brechas das venezianas da sala, e ela enxerga as sombras das cabeçorras espichadas no chão. Eles a contemplam pelas portas entreabertas, no reflexo das vidraças, ou em olhares dissimulados enquanto enceram o chão e, para eles, tanto como para menino no corrimão da escada, ela se faz acreditar invisível, e se desnuda com delicadeza de sua outra pele de cetim, agora o outro braço, até a manobra queimar todo o ar dos pulmões e ela seguir o dia carregada por frissons.

Todos estavam encantados com ela a maioria do tempo, mas não significa que Cristina fosse mulher solar. Era o oposto. Uma mulher cinza, de olhar insondável, e o menino não se aproximava dela sem os pensamentos o levarem à figura de uma santa tuberculosa.

A mãe não tossia, não gemia, seus olhos não lacrimejavam, um ai sequer libertava. Às vezes parecia desmaiar o rosto no livro, e voltava minutos depois, sem ajuda dos sais. A sensação de observar Cristina de Fernanflor desvanecendo em perfume, sem demonstrar nenhum sinal de derrota, fazia o menino, quando rezava, pedir a Deus para se vingar dele com a morte, nunca com as doenças sutis da alma.

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