Por Marta Barcellos para Valor Econômico de 12/09/2008
Um autor novo dificilmente conseguiria hoje fazer um “estilo Dalton Trevisan”
Em 1926, um jovem alemão, radicado no México, publicava o seu primeiro livro disposto a jamais dar um autógrafo ou sequer revelar sua identidade. O pseudônimo era usado com alguma freqüência naqueles tempos, mas o enigmático escritor abusou: sob a alcunha de B. Traven construiu uma obra de prestígio, com mais de uma dezena de títulos, teve um de seus romances – O tesouro de Sierra Madre – filmado por John Huston e conseguiu manter-se no mais absoluto anonimato por toda a vida. Nos dias atuais, isso seria impossível. Qualquer editor ou agente literário com um pé na realidade do mercado iria dissuadir um candidato a B. Traven de seguir o caminho da reclusão ou do anonimato, por maior que fosse o seu talento.
Escritor hoje é estrela. Em entrevistas, é instado a falar sobre os traços autobiográficos de sua obra e dar opinião sobre assuntos variados. Quando chega à lista dos mais vendidos, surgem os convites para conferências e as fofocas sobre a disputa do passe pelas editoras. Carisma, especialmente em eventos literários, é considerado importante. Na Flip de 2007, quando o sul-africano J. M. Coetzee limitou sua participação à leitura de um trecho do livro então inédito, a decepção foi geral. O Prêmio Nobel de Literatura foi tachado de antipático e rabugento.
Se até os escritores consagrados são criticados quando fogem dos holofotes, que dirá os novatos. “Um autor novo dificilmente conseguiria hoje fazer um ‘estilo Dalton Trevisan’”, diz Luciana Villas-Boas, diretora-editorial da Record. “Mas eu, pessoalmente, não pressiono ninguém a se expor, se não quiser”, ressalta. Trevisan e Rubem Fonseca, ambos com 83 anos e uma legião de leitores fiéis, são as exceções brasileiras que confirmam a regra de que autor famoso deve participar do exaustivo circuito de lançamentos, entrevistas, feiras, debates, palestras.
“Não adianta sapatear, o escritor tem que lidar com isso”, diz Moacyr Scliar, membro da Academia Brasileira de Letras, mais de 70 livros publicados e uma mala sempre a postos para deixar Porto Alegre, onde vive. “Aprendi a levar o laptop, escrever no avião, no aeroporto. Esse fenômeno veio para ficar. O escritor reservado paga o seu preço em termos de mercado.”
Scliar gosta das viagens, que já faziam parte de sua rotina como médico especializado em saúde pública – profissão que sempre conciliou com a literatura. Mas os tímidos e introvertidos reconhecem que a exposição exige algum esforço. “Gosto da privacidade, preciso de quietude”, conta Lya Luft, que costuma enviar representantes para as freqüentes homenagens feitas a ela, depois do fenômeno “Perdas & Ganhos”, com mais de 700 mil exemplares vendidos no Brasil. “Recuso tudo o que posso, mas fechar-se completamente também não é bom para o escritor.”
Finalizada a temporada de lançamento de “O Silêncio dos Amantes” pela editora Record, Lya tenta agora restringir sua agenda a um evento por mês, para se dedicar ao novo livro, com o título provisório de “Medos e Mentiras”. Entretanto, às vezes é tentada por um convite irrecusável, como uma palestra encomendada a peso de ouro por uma empresa, em torno de algum tema recorrente em sua obra ou na coluna quinzenal que mantém na revista “Veja”.
Em ocasiões como essa, um escritor famoso pode deparar com uma inusitada fila de fãs: no lugar de livros esperando por autógrafos, surgem dezenas de câmeras acopladas a celulares. “Isso não faz sentido; um escritor não é necessariamente bonito”, desabafa Lya. “Mas não se pode ser grosseiro, porque se trata de um fenômeno maior, que agora chegou ao livro. As pessoas estão carentes de modelos, precisam da fantasia de que os escritores não enfrentam dificuldades, não têm contas a pagar, não vão ao banheiro.”
A jornalista e escritora Marina Colasanti, de volta de uma feira do livro no Tocantins, diz-se impressionada com o nível de organização dos eventos em todo o país. Estima-se que são realizadas mais de 80 feiras e bienais, em todos os Estados – fora os eventos internacionais, para os quais muitos autores também são convidados. “Livro virou produto, faz parte da diversão”, comenta Marina. “Numa sociedade em que evento é a palavra mágica para tudo, a presença do autor ficou imprescindível.”
Por trás das novas exigências, está um dos pilares do mundo dos negócios: o marketing. Ele se tornou o elemento fundamental da nova lógica do processo de produção editorial, explica Heloisa Buarque de Hollanda, professora de teoria crítica da cultura da Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Não olho esse fenômeno com uma perspectiva moralista, na qual o escritor e sua obra devem ser preservados para não se corromper nem se submeter às exigências do mercado”, afirma.
Na prática, o “escritor celebridade”, segundo ela, acaba abrindo importante espaço no mercado. “Eles geram uma economia mais eficaz no setor, que possibilita a publicação de novos escritores, o que sempre foi um problema.”
Marisa Moura, que dirige a agência literária Página da Cultura, acredita que, antes do aparecimento da arte como entretenimento, os escritores já era cultuados, mas dentro de um pequeno círculo de intelectuais. “Quando surgiu o marketing e o planejamento, isso ganhou outra dimensão”, diz a agente, que representa 28 autores. Pós-graduada em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), Marisa lembra que no Brasil o custo de distribuição é especialmente pesado e as editoras cada vez mais precisam de nomes que ajudem a divulgar a obra.
Com cinco dezenas de livros publicados, Marina Colasanti avalia que o novo papel assumido pelo escritor, de exposição de seus livros, é bem-vindo para autores estabelecidos, às voltas com a dificuldade de viver de direito autoral em um país onde pouco se lê. Historicamente, nomes consagrados sempre precisaram conciliar sua carreira literária com atividades paralelas, como a de professor, jornalista ou funcionário público – caso de Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, para citar os ícones maiores da literatura brasileira. A própria Marina lembra que ela e seu marido, o poeta e cronista Affonso Romano de Sant’Anna, só puderam trilhar seus caminhos por causa das profissões de jornalista e professor universitário, respectivamente.
A agente literária Lucia Riff, uma das mais influentes do país, afirma que muitos escritores, como Marina, já conseguem viver do conjunto de atividades relacionadas ao seu trabalho literário: além dos direitos autorais – em geral 10% do preço do livro -, eles costumam receber encomendas de textos (para revistas, coletâneas e publicações variadas), convites para palestras e cursos (como os oferecidos pela Casa do Saber, no Rio e em São Paulo). “Os prêmios literários também ajudam”, acrescenta. Os autores mais carismáticos ou performáticos, que têm palestras formatadas para o mundo corporativo, por exemplo, chegam a cobrar R$ 10 mil por uma apresentação.
“A minha mercadoria é a palavra, escrita ou falada”, afirma Lya Luft, que faz parte da Agência Riff, de Lucia, ao lado de nomes como Lygia Fagundes Telles, Luis Fernando Verissimo, Adélia Prado e Ariano Suassuna. “Se qualquer atriz iniciante ganha para ir a uma festa, não há mal algum em um escritor cobrar para falar. Sou até contra não cobrar, porque o trabalho intelectual precisa ser valorizado”, opina Lya.
O cachê para participar de uma feira do livro costuma ser modesto – entre R$ 800 e R$ 1,5 mil – e eventos literários com ampla cobertura da imprensa, como a Flip, custeiam apenas a hospedagem e o transporte dos convidados.
Mesmo assim, uma viagem para o interior do país pode valer a pena, explica Marina Colasanti. “Além de fonte de remuneração, os eventos são uma forma de compensar as fragilidades do sistema de divulgação”, analisa. Ou seja, se o autor percebe que seu lançamento não ganhará a mesma verba de marketing utilizada pela editora para o best-seller estrangeiro negociado em leilão internacional, nem terá destaque nas livrarias e suplementos literários, cabe a ele arregaçar as mangas e aproveitar todos os convites e oportunidades para apresentar seu novo livro.
No caso de Laurentino Gomes e seu “1808 – Como Uma Rainha Louca, Um Príncipe Medroso e Uma Corte Corrupta Enganaram Napoleão e Mudaram a História do Brasil”, pode-se dizer que todas as variáveis conspiraram a favor do livro do jornalista. Desde o lançamento, em setembro do ano passado, o título contou com o boca-a-boca de leitores entusiasmados, um plano de marketing montado pela editora (a espanhola Planeta) e toda a disposição do autor para divulgar a obra. Onde quer que houvesse leitores, lá estava Laurentino. Do Clube Campestre de Piracicaba ao jantar harmonizado com vinho promovido pelo restaurante Expand no Rio, as platéias mais distintas puderam saborear ao vivo algumas das histórias contadas no livro. Resultado: “1808” reinou absoluto no topo da lista dos mais vendidos de não-ficção por mais de quatro meses.
“Nunca imaginei que existisse essa enorme demanda por eventos”, revela o jornalista, que pediu demissão da Editora Abril, onde esteve por 20 anos, para se dedicar às palestras e ao próximo livro, também sobre a história do Brasil. Ele conta que, no início, a sua apresentação era apenas sobre a obra, mas depois foi evoluindo, em razão das reações e dos interesses do público. “A discussão sempre acabava no Brasil de hoje; acho que as pessoas estão buscando no passado as explicações para o presente.”
Modesto, Laurentino atribui o sucesso do livro à linguagem jornalística, ao interesse pelo tema e aos detalhes do plano de comunicação – como a chamada de capa e o preço acessível, de R$ 40. “Cabe ao autor alargar a base de leitores, botar o pé na estrada.” Simpático com o público e natural diante das câmeras, ele confessa que descobriu uma vocação que até então desconhecia. “Saber criar uma conexão com a sua audiência é importante.”
Luciana Villas-Boas, da Record, ressalta que nem sempre a superexposição na mídia representa, para as editoras, um salto nas vendas do livro. “Mais do que os eventos midiáticos, como a Flip, é a apresentação de um livro para universidades ou públicos específicos que costuma alavancar as vendas.”
Paulo Rocco, presidente da editora Rocco, concorda com Luciana: “Um autor-estrela, mais exibido, pode vender bem ou não. Ser bem-humorado e fazer sucesso em um evento não faz ninguém virar best-seller.”
Os editores são cautelosos quando questionados sobre o caso inverso, do escritor excepcional e arredio, que gostaria de expressar-se “apenas” por meio de sua obra – como fez Coetzee no controvertido episódio da Flip. A situação era comum no passado recente, quando não existiam tantas solicitações nem planos de marketing para “azeitar” a cadeia do livro. Certa vez, por exemplo, Rocco recebeu os originais de Otto Lara Rezende junto com uma carta do autor, intitulada “As coisas que não farei por ocasião do lançamento do meu livro”. O escritor mineiro, que não era exatamente tímido, tinha uma verve impressionante, lembra Rocco. Ou seja, poderia ser estrela de um evento literário. Mas simplesmente não queria “incomodar os amigos” com noites de autógrafos.
“É verdade que o marketing do livro se sofisticou”, reconhece Rocco. “Mas a literatura se sobrepõe a tudo.” Já Luciana lembra que, apesar de todo o planejamento, as editoras estão sempre a se surpreender com um sucesso inesperado, fruto do velho e bom boca-a-boca – que nenhuma estratégia de marketing consegue substituir. “Só um leitor consegue transmitir para outro o prazer que teve com um livro”, afirma.
Quando esse autor cai nas graças do público, porém, as editoras passam a ter um novo problema: ele poderá ser cortejado por uma concorrente. As chamadas “disputas de passe”, envolvendo polpudos adiantamentos, se tornaram freqüentes depois que as editoras estrangeiras passaram a mirar o mercado brasileiro.
Os alvos são autores que se mostram capazes de escrever livros candidatos à lista dos mais vendidos. Nos últimos anos, a Planeta agitou o mercado com convites para escritores consagrados – e acabou atraindo os jornalistas Fernando Morais e Zuenir Ventura. Neste ano, foi a vez de a Record contratar o físico Marcelo Gleiser, colunista da “Folha de S.Paulo”. Luciana não confirma que a soma tenha sido a maior já paga pela editora. Informa apenas que o adiantamento foi cinco vezes maior do que os anteriores do escritor. Para evitar os leilões, as editoras costumam colocar na mesa de negociação – quase sempre por meio de agentes literários – adiantamentos elevados, mas a proposta só vale naquele momento. Algo como “pegar ou largar”. “O mercado está mais acirrado”, constata a diretora da Record.
Se escritor agora é superstar, fotografado por uma multidão de fãs, nada mais natural que receba os cachês das celebridades, certo? Não. Feliz pelo reconhecimento dos muitos leitores, Lya Luft, por exemplo, percebeu algum preconceito com o fato de ter se tornado um sucesso de vendas. “Passou a haver uma insinuação de que escrevo para ganhar dinheiro. É como se o artista, para ser bom, tivesse que ser um desgraçado, sempre amaldiçoando a vida”, afirma.
Sobre isso, o escritor português José Saramago comentou, ao ganhar em 1998 o Nobel de Literatura e ser questionado sobre o que faria com o US$ 1 milhão do prêmio: “As pessoas estão habituadas a escritores pobres. Mas não perguntam a um jogador de futebol o que ele fará com mais um milhão.” Agora, é esperar que a literatura se torne, no Brasil, tão popular quanto o futebol.