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Insônia ou a Pobreza Não Descansa

Insônia, um conto de Roniwalter Jatobá

Roberto Vecchi
Éderson de Oliveira Cabral

Universidade de Bolonha,Bolonha, Itália
Universidade Feevale,
Novo Hamburgo, RS, Brasil
Universidade de Coimbra, Portugal

 

A pobreza, como visto anteriormente, não é a menina dos olhos da literatura brasileira e, embora faça aparições nos textos de tantos autores17, não é o tema mais recorrente. Quando é representada nas obras, provoca impacto, capaz de chamar a atenção dos interessados por esse argumento; aos demais, passa despercebida. Apesar de ser um tema que se repete ao longo da história da literatura brasileira, todavia em termos de números de recorrências não é impactante19, mas ela está aí.

Dessa forma, nesta sessão, mostra-se como a pobreza não é apenas excluída, rejeitada e criminalizada na sociedade, mas também como ela está impressa nas páginas de Insônia, conto de Roniwalter Jatobá, em Contos Antológicos de Roniwalter Jatobá, com organização de Luiz Ruffato e publicado em 2009.

O conto, o qual em sua cenografia consegue fazer coincidir a pobreza, o pobre, o trabalho, o trabalhador e a violência em suas diversas formas, inicia com o narrador-protagonista, indagando à mãe sobre o seu nome, Otto. Ambos vivem juntos em uma casa que tem seus ambientes separados por cortinas, com frestas no telhado, com um banheiro externo, compartilhado com outras famílias, e possuem uma televisão que fica encostada na cabeceira da cama e um cachorro que nem para no pátio. Em uma noite, Otto remói pensamentos e tem uma inquietação em relação ao seu próprio nome, logo não consegue dormir: “Espantado de vez, nada de vontade de dormir. Não queria mudar de nome, nada, pensei” (JATOBÁ, 2009, p. 33). Otto não consegue dormir, faz diversas lucubrações e vê sua mãe já frágil, em um repouso daquele que foi exaurido pelo desgaste do tempo e do trabalho: “[…] fui na cama dela, botei uma calça velha em cima dos seus pés frios parecendo gelo, e fiquei olhando ela, o corpinho cansado de muita labuta” (JATOBÁ, 2009, p.34). Otto trabalha em uma fábrica, e a sua insônia o preocupa, porque teme o seu estado sonolento no seu próximo dia laboral. Dessa forma, toma coragem, veste-se e sai à rua tomar um ar, pois pensa que uma volta faria o seu sono retornar. Nessa caminhada noturna, Otto é tomado pelas lembranças do pai, pobre e trabalhador, que morreu em uma construção em um acidente de trabalho, mas é surpreendido por um homem armado, que lhe pede os documentos. Primeiramente, Otto sente um alívio por reconhecer que o homem é um possível policial, que não está sozinho, seus colegas o acompanham dentro de um carro que ilumina a rua escura. Sem documentos, passa por uma abordagem, os prováveis policias o revistam, e o alívio se transforma em medo, pois na mente de Otto ecoam rememorações dos casos que as pessoas contam desses encontros no meio da noite: “[…] o corpo esquentou no medo, ferveu nas lembranças casos contados do que essa gente apronta no meio da noite” (JATOBÁ, 2009, p. 36). Na interpelação, Otto se justifica, mas suas palavras não são ouvidas; apenas o seu nome, que se torna motivo de deboche: “[…] o que a gente faz com o doutor Otto?” (JATOBÁ, 2009, p. 37). O insone é agredido, um homem dentro do carro comanda: “[…] dá um cascudo e manda o seu Otto dormir […]” (JATOBÁ, 2009, p. 37). Após a agressão, Otto espera mais violência, mas não acontece. Liberado pelos homens, sai correndo em direção à casa, chuta seu cachorro, estanca o choro, e o sangue que sai de seu nariz. A mãe, que estava dormindo, desperta e pergunta se está na hora de acordar e ir trabalhar; Otto responde que apenas tinha ido ao banheiro, deita-se preocupado com o relógio que logo anunciará a hora de despertar e ir ao trabalho e pensa no seu próprio nome que “[…] só era visto em padre. Ou era em lorde? Onde todo mundo tinha o nome conhecido, lá vinha o meu, Otto! Isso lá era nome?” (JATOBÁ, 2009, p. 38).

O narrador-personagem levanta reflexões sobre o seu nome, e não por acaso, pois era inusitado nos seus espaços de circulação. Não era por menos, pois o nome, no conto, exerce uma força de contradição com a pobreza que o cerca: Otto significa rico, próspero. Além disso, Otto serve como hipocorístico de nomes germânicos iniciados pelos elementos od ou ot, tais como Audo, Odo, Otton. Essas partículas od e ot também remetem à ideia de riquezas e bens. O nome Otto proporciona um efeito paradoxal dentro da cenografia do conto, pois o protagonista não possui bens, nem a aura do nome que evidencia a origem nobre ou as qualidades boas e admiráveis de uma classe dominante. Otto não é lorde, nem padre, não tem sobrenome evidenciado na narrativa, tampouco pertence às esferas onde circulam os doutores, como é chamado pelo homem, “doutor Otto”, num tom de deboche e escárnio. O título de doutor, dado às pessoas de posse, de bens e consequentemente de prestígio social, faz-nos remeter novamente ao conto O outro, de Rubem Fonseca.

A insônia que Otto sofre também faz dialogar com as narrativas já consagradas nacionalmente, como as de Graciliano Ramos, que tem o próprio conto intitulado Insônia, no qual o narrador-protagonista também é acometido pelas preocupações da urbe moderna, e como Os ratos, de Dyonélio Machado, no qual os personagens sofrem com noites mal dormidas diante de preocupações e de privações, tanto da vida urbana, quanto do trabalho, que coincidem. Otto também é um pobre que tem o sono privado, e a pobreza que lhe cerca monta um cenário sufocante, fechado, dominado por outros homens, e assim também se percebe classes que dominam classes, vê-se a dominação, que, como aponta Michel Foucault (2007), não é mais uma relação, tampouco o lugar onde ela se exerce é um lugar.

Insônia, de Roniwalter Jatobá, é uma narrativa breve que evidencia uma série de elementos da pobreza e do trabalho, a exemplo do pai de Otto, que é apenas mais um que morre na construção (retomando a canção de Chico Buarque). A pobreza mostrada no conto é um não lugar, contando a pobreza das urbes brasileiras, a qual aparece em todos os lugares. No entanto, há uma força dominante que tenta deixá-la (e consegue) em lugar periférico, mas essa pobreza nas periferias já não cabe e não se contém. O pobre/o trabalhador se desloca de um lugar ao outro: é centro-periférico na atividade laboral, é periférico-central no descanso. Mas que descanso, uma vez que nos deslocamentos o trabalhador e pobre deve estar atento, para não ser surpreendido como Otto no meio de uma noite de insônia. Em uma caminhada na qual deveria aparecer o sono, surge a violência, declarando que Otto pode ser exaurido, não somente pelas condições miseráveis em que vive, como também pelo trabalho, que não lhe traz dignidade, e por homens armados que determinam até onde pode ir e em que momento pode circular.

A narrativa também deixa notório o não tempo da pobreza nas urbes brasileiras, pois não apresenta um índice de tempo. De forma similar, a pobreza no Brasil é uma continuidade, desde a época colonial, que deixa uma herança, a qual condiciona cor e classe, mas que também se estende ao período da industrialização, da ditadura, da retomada da democracia até a contemporaneidade. O conto não revela a cor dos personagens, há uma não cor, embora a classe social e a cor estejam relacionadas no Brasil, pois atinge de modo impactante a população negra. Todavia, no conto, faz-se notar que a periferia é ou pode ser habitada por todas as etnias.

Otto é um ser humano exaurido, acometido por uma série de violências, pela exclusão, pela desaprovação e pela condenação. Não sabe o motivo das agressões, nem quem as comete. No conto, é dúbia a profissão dos agressores, mas não sua função: delimitam o espaço, vigiam e punem. A pobreza e seus opressores vivem uma guerra de baixa intensidade, uma guerra vergonhosa e declarada contra a pobreza e o pobre, o qual é a vítima sacrificial predestinada. Na modernidade, a pobreza é, assim, combatida pelo capitalismo, porque é um espelho no qual ninguém deseja se ver. A pobreza, a miséria e o trabalhador são vistos como imagens medonhas, as quais todos devem evitar e, se possível, executar ou exaurir sem culpa.

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